quinta-feira, 4 de julho de 2013

Futebol, mandingas e fanatismos. Por Mário Sérgio Cortella



Notícias

05/06/2013 08:30
por:
Redação Terceiro Tempo

Futebol, mandingas e fanatismos. Por Mário Sérgio Cortella

O filósofo Mario Sergio Cortella analisa — e o xilogravurista J. Borges desenha — a devoção dos torcedores de futebol pelo seu time de coração


O Brasil foi fundado em 1500, o futebol chegou por aqui quase quatro séculos depois, mas, logo em nossos princípios, os colonizadores trouxeram uma palavra africana originária do malinês (no antigo Sudão) que se incorporou ao nosso léxico esportivo com rapidez: mandinga!

Mandinga (agora um sinônimo para feitiço, magia, reza-brava, superstição) era um dos nomes dados a alguns povos que viveram em regiões que hoje estariam, além de no Mali, no Marrocos e na Etiópia. Porque esses territórios eram conhecidos como “terra de feiticeiros”, o topônimo ganhou entre nós a acepção de prática sobrenatural.

Não é casual que o estupendo escritor (e torcedor fanático) Nelson Rodrigues tenha inventado um personagem, o Sobrenatural de Almeida, para dar sentido a tudo que não parecia ter sentido quando o time dele era derrotado. Afinal, futebol, como campo também da crença desmesurada e da fé menos refletida, é lugar propício aos fanatismos, ainda mais que fanun, em latim, significa templo e fanaticus é quem serve aos deuses (e, nesta Terra de Santa Cruz, especialmente aos deuses do futebol)...

Fanático pode ser entendido como louco ou obsessivo; contudo, há um sentido menos delirante, que é entusiasmado ou apaixonado. Sabemos que, etimologicamente, entusiasmado é quem é pelos deuses arrebatado, enquanto que apaixonado é quem é possuído por sentimento tão intenso que encanta, mas que faz sofrer e provoca obscurecimento da razão. Quer coincidência melhor do que esta na órbita futebolística? Arrebatação, sofrimento e razão obscurecida! Esse é o encanto de um esporte no qual “pôr fé” é acreditar no inacreditável, desejar o improvável e resmungar contra o impossível!

Vale planejar, estudar e examinar os elementos racionais de uma copa, um campeonato ou uma partida? Vale, mas pouco. O que vale mesmo é cada torcedor torcer, isto é, gritar, cruzar os dedos, praguejar, pedir força, benzer-se, usar amuletos, atormentar-se e atormentar outros; não esqueçamos que os verbos torcer e torturar vêm de um mesmo vocábulo latino, torquere.

Claro, há dores inúteis e idiotices retumbantes, como quando o torcer como estímulo e aspiração se torna violência, agressão e brutalidade, quando, então, os deuses se retiram e adentram os demônios, que precisam ser vigiados e controlados, para que o benefício da alegria espontânea e repartida do futebol não se converta no malefício da crueldade intencional e homicida no futebol.

Eu faço uma mandinga, o adversário faz outra contra meu time, ou seja, contra mim! Quer me desafiar, me vencer, me humilhar. Porém, “meu nome é legião”, somos muitos, e outros, e vários, e valentes, como nossos deuses; não desistiremos, nem nossos deuses, forças que são anteriores e superiores a nós, com as quais nos ligamos quando oramos, fazemos promessas, dedicamos oferendas, invocamos com fervor. Eu torço, o outro torce comigo, um outro torce contra mim, os adversários se tornam inimigos e nossos deuses se enfrentam nos estádios.

Futebol enfeitiça, encanta e cativa! Bom demais; e, como toda boa paixão, é a suspensão temporária do juízo. Copa, taça, copo. Um brinde aos deuses; um pouco do líquido derramamos na grama, fica para “o santo”...




Mario Sergio Cortella (Londrina, PR, 1954), filósofo, escritor e professor titular da PUC-SP, é torcedor do Santos.
http://terceirotempo.bol.uol.com.br/noticia/futebol-mandingas-e-fanatismos-por-mario-sergio-cortella-84874

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